O Conselheiro do Crime

outubro 26, 2013

conselheiro

Por Pedro Costa de Biasi

É inevitável que todo filme carregue diversas facetas dentro de si. Alguns dobram essas características diversas em sua história, sejam elas patentes ou ocultas. O Conselheiro do Crime, que estreou nesta sexta, 25, é um caso curioso, em que vários filmes diferentes coabitam nem sempre em harmonia. Há uma quantidade considerável de tramas e personagens, que se desenvolvem em cenas que não poderiam ser mais distintas umas das outras. É difícil determinar se tudo é calculado, mas, de uma maneira ou de outra, há instantes tão instigantes e potentes que a coerência do todo ganha outra relevância. 

O Conselheiro do título é um advogado chamado apenas de Doutor (Michael Fassbender), que está em um apaixonado relacionamento com Laura (Penélope Cruz). Ele decide se arriscar em uma passagem pelo crime, idealizada como breve, junto de seu amigo Reiner (Javier Bardem), já experiente no submundo das drogas. Ele ajudará a transportar um grande carregamento de cocaína, mas nunca de forma direta, apenas através do filho de sua cliente. Embora pareça uma empreitada rotineira e sem grandes riscos, o advogado descobre gradualmente qual o nível de seu envolvimento quando a situação começa a fugir de controle. 

Não é surpresa que o gênero do filme ondule pelo romance, pelo drama e pelo thriller criminal. Interessante, mesmo, é como o roteiro de Cormac McCarthy se apresenta como uma tragédia antes de outra perspectiva, sub-reptícia, ser denunciada. É verdade que a chave para essa trama paralela é a omissão de detalhes da história, mas há simbologias e sinais (não tão sutis) espalhados pela narrativa que apontam obliquamente para o jogo que de fato está sendo jogado. Justo; essa reviravolta acontece à revelia do protagonista e de seus próximos, e McCarthy usa as informações como iscas para pescar o espectador, emparelhando o que este e os personagens sabem. 

A palavra é “pescar”, mesmo, como na frieza do esporte, e não como no eufemismo glamourizado do “fisgar”. Não é exagero dizer que dar de cara com o desfecho do imbróglio é uma experiência semelhante à do peixe que é içado água afora, indefeso e sem ar. Este é um filme em que a brutalidade caminha a passos que aparentam erráticos, variando da angustiante violência gráfica à horripilante sugestão. Claro que, nessa caminhada irregular, há desvios e paradas que desviam do curso. É difícil, por exemplo, reconhecer o mérito de toda a “subtrama” do caminhão que carrega as drogas. É como se essa ilustração em cenas evitasse diálogos expositivos para compensar a tendência do filme à digressão verbal. 

No entanto, essa destroncada história – pontuada por uma amostra prematura dos horrendos métodos de violência em operação no submundo do tráfico – não tem como função principal explanar a história, mas sim atestar a distância do protagonista em relação a seu ato. O roteiro não liga o desastre no transporte das drogas ao Doutor através de minucioso rastreamento, mas de forma direta, numa única linha. As forças que operam por detrás do cenário são seres oniscientes, capazes de encontrar quaisquer informações e, é claro, agir de forma implacável para atingir todos os envolvidos. 

Não há elegância em qualquer aspecto da trama; as pontas não se juntam de forma intrincada e cuidadosamente confeccionada, mas como decorrência inevitável de um deus castigador atento para suas criaturas desviantes. É verdade que nem todos esses chefões manipuladores estão totalmente ocultos, mas mesmo quando um deles se mostra, é como uma figura não dilapidada, cheia de arestas – morais, comportamentais, procedimentais – e desconstruída em suas idiossincrasias mais gratuitas. Não por acaso, uma de suas cenas é a mais cômica num filme quase destituído de graça. Também há de se especular se a estranha e estilizada trilha sonora de Daniel Pemberton não foi criada em cima dessa personagem, assim como a fotografia de Dariusz Wolski, de uma beleza inusitada para um filme tão cru. 

Falando em elementos centrífugos, é importante voltar aos monólogos nos quais McCarthy tanto se esmera. Todos são relacionados a algum aspecto da criminalidade, mas os resultados são irregulares e não raro esbarram na gratuidade. O roteirista também não resiste a incluir cenas inteiras dedicadas a amostras sobressalentes de cinismo – com destaque para a horrível cena com John Leguizamo. Toda a história converge para a mesma realidade desumana, e este tipo de excesso, ao contrário dos já citados, soa mais como indulgência solta do que como resíduo da narrativa. No entanto, em uma das mais intensas cenas de Fassbender, seu personagem recebe um conselho por telefone, uma exaustiva, mas fútil exploração moral de suas escolhas. O solilóquio, que poderia ser um caso de “dourar a pílula”, se eleva do puro preciosismo por representar, em seu âmago, uma mensagem que é o puro embelezamento da inevitabilidade e do terrível conformismo. 

O fato é que o filme carrega fortes dissonâncias – enaltecidas frontalmente pelo elenco e pelo diretor Ridley Scott –, mas elas quase sempre têm sua razão de ser. Na história, a situação só fica fora de controle quando esse controle é substituído por outro. Neste sentido, curiosamente, o longa aproxima-se do oposto do cinema dos irmãos Coen – que já filmaram um texto de McCarthy com belos resultados. Há sempre alguém no controle de tudo, seja das mercadorias ou das vidas dos envolvidos. Que o resultado final da obra beire o caótico e o errático é um testamento para as reais intenções por trás do roteiro. O tema principal é o domínio, incluindo aí o caos controlado e as formas brutais e grosseiras como determinada ordem é reassegurada. Frustrar-se com a desordem de O Conselheiro do Crime é apenas reflexo natural de se esperar dominar com uma só corrente um cão de três cabeças.