Valente

julho 19, 2012

 

por Pedro Costa de Biasi

A premissa de Valente, que estreia nesta sexta-feira, 20, parece menos Pixar e mais Disney. Como protagonista,temos a princesa Merida, que se dá bem com o pai bonachão, o rei Fergus, mastem uma relação difícil com sua austera mãe Elinor. Apegada à tradição, arainha lamenta a postura rebelde da filha, que culmina em uma atitude quecoloca o reino em perigo. Após uma discussão séria, Merida foge para umafloresta e lá encontra o casebre de uma velha bruxa, para quem pede um encantoque mude sua mãe e seu destino. Quando o resultado do feitiço se revela, ajovem percebe que seus problemas estão apenas começando.

Contando com uma princesa, uma bruxa(não exatamente má; apenas, digamos, especializada demais), um feitiço,metamorfoses mágicas e um clímax bastante emotivo, a impressão primeira é a deque o filme dirigido por Brenda Chapman e Mark Andrews faria sentido se fosseuma animação tradicional dos estúdios Walt Disney. No entanto, uma série dediferenças marcam a nova história original da Pixar.

É verdade que a ambientação escocesa éum universo de regras próprias que vão sendo reveladas ao longo do filme, elementocomum a longas diversos como Mulan, Toy Story, WALL·E e Pocahontas. Já a magia é menos simples,pois não é apenas um dado corriqueiro ou uma ferramenta para encaminhar a trama.Algumas personagens acreditam em sua existência enquanto outras são céticas, e essarelativização é também característica da Pixar, pois as obras do estúdio frequentementecolocam certas ideias ou situações em discussão.

O tom humorístico, tão forte que surgeaté mesmo em cenas sérias, também deixa Valentemuito mais próximo da comédia do que a maioria dos clássicos “filmes deprincesa”. Essa distinção, porém, tem seu peso negativo. Não há nada errado empersonagens que têm uma função determinada, e aqui, há uma porção de figurascom a missão única de fazer rir – e mesmo quando servem para movimentar ahistória, elas o fazem com humor. O engodo do roteiro é a apresentação narradapor Merida, que introduz cada personagem humorístico (e outros) como tal, eassim formata suas funções – que manter-se-ão imutáveis até o fim.

Há também algumas piadas, como a queenvolve o resultado do feitiço, que funcionam por algum tempo, mas sofrem pelarepetição e logo se tornam estafantes. Felizmente, nem todas as personagens seencontram engessadas em sua funcionalidade. Fergus, Elinor e Merida, porexemplo, alternam com bastante leveza suas facetas cômicas e dramáticas. Essetipo de ambivalência, fruto de um esforço para repensar os valores de certosarquétipos, proporciona ao filme algumas de suas mais gratificantes qualidades.

Merida, por exemplo, pode parecer umaversão mais revoltada da Rapunzel de Enrolados,com seu ímpeto de ir contra as regras e se aventurar onde não lhe é permitido,mas essa tímida semelhança atenta para a grande diferença entre a protagonistade Valente e boa parte das princesas animadas:ela não está enfrentando uma encarnação do Mal. Todos os conflitos surgem pelainsatisfação da jovem perante as tradições do reino, impostas por sua mãe. Nãoexiste um antagonismo maniqueísta nem um vilão propriamente dito.

Essa característica permite  não só uma estrutura narrativa mais livre,como também uma protagonista que representa diversos valores em vez de serapenas um oásis para o Bem e a pureza. Isso sinaliza uma humanização bastantesaudável: aquelas personagens cometem erros, reconhecem o fato e conseguem mudarsuas perspectivas. O roteiro não se limita a descartar a teimosia de Merida ouo conservadorismo de Elinor, optando por trabalhar essas (e outras)características e descobrir novas facetas das mulheres. A impressão é apretendida: de que as personalidades se mantêm, mas as situações mudam ospontos de vista.

As questões sobre o Destino chegam auma conclusão pacífica, previsível até, mas ao dispor as tensões de forma amudar a visão tanto de Elinor quanto de Merida, a moral do filme é permissiva obastante para não ser simplória. Um ato da princesa que poderia ser visto comointrinsecamente errado é tratado como uma escolha natural a sua índole, umaescolha com consequências que não precisam resultar em tragédia – a história dourso gigante Mor’du, afinal, serve de comparação como um exemplo de um erromanuseado de forma nociva.

Valente faz jus a seu título ao contestar a existência de um Bem ou de um Mal absoluto,oferecendo um discurso que valoriza as escolhas individuais e a dedicação paracompreender os outros. Por trás de sua aparência esquemática, esse “filme deprincesa” possui uma disposição admirável para desconstruir arquétipos eimbui-los de humanidade.